ARTIGO ORIGINAL
PERFIL CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICO DAS QUEIMADURAS EM CRIANÇAS ANTES E DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
CLINICAL-EPIDEMIOLOGICAL PROFILE OF BURNS IN CHILDREN BEFORE AND DURING THE COVID-19 PANDEMIC
PERFIL CLÍNICO-EPIDEMIOLÓGICO DE QUEMADURAS EN NIÑOS ANTES Y DURANTE LA PANDEMIA DE COVID-19
https://doi.org/10.31011/reaid-2025-v.99-n.Ed.Esp-art.2253
1Paola Ramos Silvestrim
2Susany Franciely Pimenta
3Rosângela Aparecida Pimenta
1Enfermeira, Mestranda em Enfermagem, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5703-2199.
2Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1170-1836.
3Enfermeira, Doutora e Docente em Enfermagem, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0157-7461.
Autor correspondente
Paola Ramos Silvestrim
Rua Doutora Anita de Carvalho, nº 425. CEP: 86079-430. Londrina, Paraná, Brasil. Telefone: +55 (43) 99924-6441 E-mail: paolarsilvestrim@gmail.com
Submissão: 06-05-2024
Aprovado: 27-02-2025
RESUMO
Introdução: A queimadura é uma das principais causas de acidentes não intencionais em crianças e adolescentes, e representa alta morbimortalidade. Com a pandemia COVID-19, a alteração de sua epidemiologia foi esperada. Objetivo: Analisar o perfil clínico-epidemiológico das queimaduras em crianças menores de 12 anos antes e durante a pandemia COVID-19. Método: Estudo quantitativo, com delineamento transversal e retrospectivo, realizado em um Centro de Tratamento de Queimados de hospital público universitário, região sul do Brasil, de 2019 a 2021. Extraiu-se os dados de prontuários e do sistema MedView, analisados no SPSS®. Utilizou-se a frequência absoluta e relativa, medidas pela média, mediana e desvio padrão, considerou-se p<0,05. Resultados: Ocorreram queimaduras em 112 crianças, 63 destas em 2019 e 49 em 2020/2021. Quase 60% entre o sexo masculino, ≤6 anos, sendo a mediana de 24 meses de idade. Entre os agentes causais: escaldo (67,3%), chama (19,1%) e contato (13,6%). Quase a totalidade (99,1%) no domicílio, mais frequentemente nos meses de junho e julho (2019) e janeiro e novembro (2020/2021). Lesões de 3º grau representaram 18,8% e, de 2° grau, 81,2%. Para 75,9% das crianças o tempo de internação foi até 14 dias, mediana de 8,5 dias, 13,4% desenvolveram infecção e para 96,4% o desfecho foi a alta. Não houve diferença estatística entre os dois períodos analisados. Conclusão: As queimaduras permaneceram predominantes no ambiente doméstico antes e durante a pandemia COVID-19, a menor ocorrência de internação no período pandêmico pode ser reflexo do afastamento social e maior tempo de permanência de adulto no domicílio.
Palavras-chave: Criança; Queimaduras; Epidemiologia; Unidades de Queimados; COVID-19.
ABSTRACT
Introduction: Burns are one of the main causes of unintentional accidents in children and adolescents, and represent high morbidity and mortality. With the COVID-19 pandemic, changes in its epidemiology were expected. Objective: To analyze the clinical-epidemiological profile of burns in children under 12 years of age before and during the COVID-19 pandemic. Method: Quantitative study, with a cross-sectional and retrospective design, carried out in a Burn Treatment Center of a public university hospital, southern region of Brazil, from 2019 to 2021. Data were extracted from medical records and the MedView system, analyzed in SPSS®. The absolute and relative frequency was used, measured by the mean, median and standard deviation, considering p<0.05. Results: Burns occurred in 112 children, 63 of these in 2019 and 49 in 2020/2021. Almost 60% were males, ≤6 years old, with a median of 24 months of age. Among the causal agents: scald (67.3%), flame (19.1%) and contact (13.6%). Almost all (99.1%) at home, most frequently in the months of June and July (2019) and January and November (2020/2021). Third-degree injuries represented 18.8% and second-degree injuries represented 81.2%. For 75.9% of children, the length of stay was up to 14 days, a median of 8.5 days, 13.4% developed an infection and for 96.4% the outcome was discharge. There was no statistical difference between the two periods analyzed. Conclusion: Burns remained predominant in the domestic environment before and during the COVID-19 pandemic, the lower occurrence of hospitalizations during the pandemic period may be a reflection of social distancing and longer adult stays at home.
Keywords: Child; Burns; Epidemiology; Burn Units; COVID-19.
RESUMEN
Introducción: Las quemaduras son una de las principales causas de accidentes no intencionales en niños y adolescentes, y representan una alta morbimortalidad. Con la pandemia de COVID-19 se esperaban cambios en su epidemiología. Objetivo: Analizar el perfil clínico-epidemiológico de las quemaduras en niños menores de 12 años antes y durante la pandemia de COVID-19. Método: Estudio cuantitativo, de diseño transversal y retrospectivo, realizado en un Centro de Tratamiento de Quemados de un hospital público universitario, región sur de Brasil, de 2019 a 2021. Los datos fueron extraídos de las historias clínicas y del sistema MedView, analizados en SPSS®. Se utilizó la frecuencia absoluta y relativa, medida por la media, mediana y desviación estándar, considerando p<0,05. Resultados: Se produjeron quemaduras en 112 niños, 63 de estos en 2019 y 49 en 2020/2021. Casi el 60% eran varones, ≤6 años, con una mediana de edad de 24 meses. Entre los agentes causales: escaldadura (67,3%), llama (19,1%) y contacto (13,6%). Casi todos (99,1%) en casa, con mayor frecuencia en los meses de junio y julio (2019) y enero y noviembre (2020/2021). Las lesiones de tercer grado representaron el 18,8% y las de segundo grado el 81,2%. Para el 75,9% de los niños la estancia hospitalaria fue de hasta 14 días, una mediana de 8,5 días, el 13,4% desarrolló una infección y el 96,4% tuvo como resultado el alta. No hubo diferencia estadística entre los dos períodos analizados. Conclusión: Las quemaduras siguieron siendo predominantes en el ambiente doméstico antes y durante la pandemia de COVID-19, la menor ocurrencia de hospitalizaciones durante el período pandémico puede ser un reflejo del distanciamiento social y de las estadías más prolongadas de los adultos en el hogar.
Palabras clave: Niño; Quemaduras; Epidemiología; Unidades de Quemados; COVID-19.
INTRODUÇÃO
Estudos epidemiológicos mundiais indicam que a queimadura é uma das principais causas de acidentes não intencionais em crianças e adolescentes, e representa importante causa de morbimortalidade na infância(1). No Brasil, dados da Sociedade Brasileira de Queimadura (SBQ) evidenciam que a queimadura atinge cerca de 1 milhão de pessoas por ano e pode ocorrer em pessoas de qualquer faixa etária, sendo 40% em crianças de até 10 anos, e a maior parte dos acidentes domésticos e preveníveis, correspondendo cerca de 77%(2).
Para tanto, em dezembro de 2019 houve a emergência na China do novo coronavírus (SARS-CoV-2), responsável pela pandemia de COVID-19 e, com isso, a humanidade enfrenta uma grave crise sanitária global. A Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, em 30 de janeiro de 2020 e uma pandemia no dia 11 de março de 2020. Muitos países implementaram uma série de intervenções para reduzir a transmissão do vírus e frear a rápida evolução da pandemia, tais como: isolamento de casos; incentivo a higienização das mãos; adoção de etiqueta respiratória e ao uso de máscaras faciais; medidas progressivas de distanciamento social com o fechamento de escolas e universidades; proibição de eventos de massa e de aglomerações; restrição de viagens e transportes públicos e a conscientização da população para que permanece em casa(3).
As medidas de distanciamento social levaram ao fechamento de escolas, atingindo mais de 1,5 bilhão de crianças e adolescentes em todo o mundo. Estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) constatou que 104 de 136 países interromperam a oferta de serviços de proteção à criança contra a violência durante a pandemia, sendo 83% localizados na América Latina. No Brasil, 23 milhões de crianças e adolescentes deixaram de frequentar a escola no ensino fundamental e médio. Ademais, um dos impactos se refere a maior notificação de casos de violência após o fechamento das escolas no país(4).
O distanciamento social teve suas adaptações em cada local em que foi adotado, na dependência das diferenças culturais ou de decisões políticas dos governantes. Na Europa, sem um padrão uniforme variou com a implementação de estratégias diversificadas e com diferentes percentuais de adesão. Em alguns países houve o lockdown completo, que incluiu a proibição das pessoas saírem de casa, exceto para comprar suprimentos básicos ou para acessar serviços de saúde. Em todo o mundo, pelo menos 186 países implementaram vários graus de restrições à circulação de pessoas, chegando ao lockdown em 82 deles(5). Segundo estudo realizado em 2021(6), as faixas pediátricas/jovens (0-19 anos) e geriátricas (≥60 anos) foram as mais suscetíveis ao acidente doméstico durante a pandemia.
A alteração na epidemiologia das queimaduras durante a pandemia do COVID-19 foi esperada devido à mudança no padrão de atividades diárias das famílias visto a maior permanência no ambiente domiciliar e isolamento social. Diante da importância e gravidade deste agravo, o objetivo geral desta pesquisa foi analisar o perfil clínico-epidemiológico das queimaduras em crianças menores de 12 anos antes e durante a pandemia de COVID-19.
MÉTODOS
Estudo do tipo quantitativo, transversal e retrospectivo, realizado no período de março de 2019 a fevereiro de 2021. A população foi constituída por menores de 12 anos vítimas de queimaduras internados no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) de um hospital público universitário, localizado na região norte do Paraná, sul do Brasil.
Este hospital atende pacientes de cerca de 250 municípios do Paraná e de mais de 100 cidades de outros estados, de várias regiões do País, principalmente São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia(7), para todas as especialidades médicas.
Os critérios de inclusão foram: todas as crianças menores de 12 anos vítimas de queimaduras e internadas no CTQ. Excluiu-se aqueles admitidos para realização de cirurgias eletivas, que necessitaram de internações após a primeira alta hospitalar.
Inicialmente, foi consultado o serviço de estatística do hospital para obter o registro de todas as crianças que deram entrada ao CTQ no período de estudo, após foram coletadas informações dos prontuários do serviço de arquivo médico, do sistema médico eletrônico (sistema MedView) e pelos pesquisadores do projeto.
Para a coleta de dados, foi utilizada uma planilha eletrônica previamente elaborada no Microsoft Excel 2013, tendo como variável dependente a pandemia de COVID-19 e independentes, as condições clínico-epidemiológicas da internação por queimadura (sexo, faixa etária, motivo do acidente, agente causal, Superfície Corporal Queimada (SCQ), profundidade da lesão, região corporal atingida, tempo de hospitalização, infecção e desfecho (alta e óbito)). Posteriormente todas as análises foram realizadas no programa IBM Software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), para o Windows e versão 20.0®. Para a análise categórica foi utilizada frequência absoluta e relativa e, para as variáveis contínuas, medidas pela média, mediana e desvio padrão mínimo e máximo, considerou-se o valor p<0,05.
Este estudo foi extraído da pesquisa intitulada “Avaliação das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde em Crianças e Adolescentes”, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina (CEP/UEL), parecer no 4.165.597 e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) no 28068119.6.0000.5231.
RESULTADOS
No período analisado, foram internadas 123 crianças no CTQ sendo excluídos 11 casos por falta de dados clínico-epidemiológicos nos prontuários essenciais para a consolidação da pesquisa, como agente causal, motivo do acidente, SCQ, entre outros.
Foram vítimas de queimaduras 112 crianças, destas 63 em 2019 e 49 nos anos 2020/2021.
Entre as crianças menores de seis, a idade mediana foi de 24 meses, enquanto que, entre aquelas com sete anos ou mais, 108 meses. Em 2019, observou-se a mediana de quatro acidentes por queimaduras e, em 2020/2021, cinco acidentes. Crianças ≤6 anos foram as mais acometidas, sobretudo em junho, julho e agosto de 2019 e em janeiro, fevereiro, julho e novembro de 2020 e de 2021.
As queimaduras no ano de 2019 ocorreram predominantemente nos meses de junho (11 casos), julho (10 casos) e setembro (8 casos). Já nos anos 2020/2021, janeiro (7 casos) e novembro (7 casos).
O agente causal predominante nos dois anos da pesquisa foi o escaldo, com 40 casos em 2019 (35,7%) e 31 em 2020 (27,6%). Os meses em que ocorreram com mais frequência foram julho e setembro, em 2019, e em novembro nos anos de 2020/2021. Destaca-se que a queimadura causada por chamas teve seu maior número em maio de 2019 e a queimadura por contato em junho do mesmo ano.
Com relação às características epidemiológicas e clínicas (Tabela 1), observou-se que o sexo masculino foi o mais atingido. Entre as crianças com idade ≤6 anos, ocorreu de forma semelhante em ambos os sexos. Já entre aquelas com idade ≥7 anos, 19,4% das queimaduras entre meninos. Quase a totalidade (99,1%) dos acidentes ocorreram no ambiente doméstico.
No grupo de crianças ≤6 anos a mediana de idade foi 24 meses, enquanto que, no ≥7 anos 108 meses. Entre os ≤6 anos, 75,4% tiveram mais de dois seguimentos corporais atingidos e a profundidade da lesão, para 81,2% o 2° grau. O maior percentual das crianças teve ≤10% da SCQ. Em relação a região corporal atingida ambos os grupos tiveram múltiplos segmentos acometidos.
A mediana do período de hospitalização foi de 8,5 dias, sendo mínimo 1 dia e máximo 191 dias, e 75,9% permaneceram ≤14 dias internadas. Foram identificadas 13,4% de notificações de infecção durante a internação, sendo que 80% tinham ≤6 anos.
Ocorreram 4 óbitos em 2019, dois do sexo feminino e dois masculinos, destas, duas cinco e seis anos e, outras, nove anos. Em relação ao agente causal, uma o líquido aquecido, duas a chama com líquido inflamável e uma vítima de homicídio utilizando o líquido inflamável. Todas apresentaram vários seguimentos lesionados, com queimaduras de 3° grau e SCQ ≥ 25%.
Tabela 1 - Características clínico-epidemiológicas por grupo etário (≤6 anos e ≥7 anos), 2019 a 2020/2021, Paraná, Brasil. N=112.
Variáveis |
≥ 7 anos |
Total |
|
n (%) |
n (%) |
n (%) |
|
Sexo |
|
||
54 (80,6) |
13 (19,4) |
67 (59,8) |
|
Feminino |
38 (84,4) |
7 (15,6) |
45 (40,2) |
Motivo do acidente |
|
||
Acidente doméstico |
91 (82,0) |
20 (18,0) |
111 (99,1) |
Homicídio |
1 (100,0) |
- |
1 (0,9) |
Agente causal |
|
||
Escaldo |
63 (85,1) |
11 (14,9) |
74 (67,3) |
Chama |
14 (66,7) |
7 (33,3) |
21 (19,1) |
Contato |
13 (86,7) |
2 (13,3) |
15 (13,6) |
Superfície Corporal Queimada |
|
||
67 (84,8) |
12 (15,2) |
79 (74,5) |
|
11 a 24% |
15 (75,0) |
5 (25,0) |
20 (18,9) |
≥25% |
5 (71,4) |
2 (28,6) |
7 (6,6) |
Profundidade da lesão |
|
|
|
2° grau |
78 (85,7) |
13 (14,3) |
91 (81,2) |
3° grau |
14 (66,7) |
7 (33,3) |
21 (18,8) |
Região corporal atingida |
|
||
Mais de dois seguimentos |
49 (75,4) |
16 (24,6) |
65 (58,0) |
Um segmento |
43 (91,5) |
4 (8,5) |
47 (42,0) |
Período de hospitalização |
|
||
≤ 14 dias |
72 (84,7) |
13 (15,3) |
85 (75,9) |
>15 dias |
20 (74,1) |
7 (25,9) |
27 (24,1) |
Infecção |
|
||
Sim |
12 (80,0) |
3 (20,0) |
15 (13,4) |
Não |
80 (82,5) |
17 (17,5) |
97 (86,6) |
Desfecho |
|
||
Alta |
90 (83,3) |
18 (16,7) |
108 (96,4) |
Óbito |
2 (50,0) |
2 (50,0) |
4 (3,6) |
Fonte: Elaborada pelas autoras (2024).
Diante do exposto, não houve diferença estatística entre antes e durante a pandemia do COVID-19 nos achados clínico-epidemiológicos de crianças que sofreram queimaduras no CTQ que atende todas as regiões do Paraná e estados vizinhos.
DISCUSSÃO
Com a maioria das escolas fechadas, em 2020, as crianças passaram muito mais tempo em casa. Assim, observou-se um aumento dos acidentes domésticos pediátricos durante este período, incluindo ferimentos por queimadura (geralmente causados por crianças que puxavam panelas da mesa da cozinha, derramando água quente acidentalmente sobre o corpo) gerando tanto queimaduras leves quanto graves e, estas, por conseguinte, exigem várias sessões de desbridamento da ferida sob anestesia geral e tratamento por longo tempo no ambiente hospitalar(8).
O aumento do tempo de permanência e de contato dentro do lar, que nem sempre oferece as melhores condições de bem-estar e segurança, pode favorecer os riscos de acidentes, as tensões e os conflitos entre os pais e, até mesmo, episódios de violência. Esse contexto aumenta a chance de injúrias, acidentes e agravos à saúde física e mental das crianças(9). Por outro lado, as crianças, com o afastamento das escolas e creches, locais que em geral são construídos sob a perspectiva de sua segurança, estão em tempo integral nos seus lares juntos de sua família, sugerindo maior exposição aos acidentes domésticos.
Autores compararam a ocorrência de queimaduras em 2019 e em 2020, antes e durante a pandemia do COVID-19 nos Estados Unidos (2021) e observaram que as queimaduras por escaldadura foram o tipo de lesão mais comum durante os dois períodos de estudo. No entanto, a proporção de incêndios domésticos foi significativamente maior durante a pandemia comparado ao período não pandêmico. Embora as razões exatas para o aumento observado de incêndios em residências não sejam claras, as razões incluem perda de conexões sociais e apoio familiar, estresse de trabalhar em casa e supervisão inadequada(10). Diante dos estudos apontados, nesta pesquisa observou-se que não houve diferença significativa entre os acidentes antes e durante a pandemia. Contudo, o agente causal escaldo foi o predominante (67,3%) em ambos períodos, indo de encontro com os achados evidenciados.
Os acidentes por queimaduras que ocorreram neste estudo foram mais frequentes nos meses de junho, julho e setembro antes da pandemia, e, janeiro e novembro durante a pandemia. Esses meses representam, no Brasil, períodos de férias escolares das crianças, exceto novembro, período que ainda as escolas estavam em isolamento social. Sugere-se que nesses períodos as crianças ficaram mais tempo no ambiente domiciliar e, portanto, acidentes não foram prevenidos.
Esses dados são diferentes de outros países, já que as férias escolares ocorrem em períodos distintos em cada país. Nos Estados Unidos, as crianças normalmente não frequentam a escola por até 12 semanas durante o verão (maio a agosto), comumente chamadas de férias de verão. As escolas durante todo o ano (também conhecidas como calendários distribuídos) operam em um cronograma de 180 dias semelhante às escolas tradicionais. No entanto, durante todo o ano incorporam pausas mais curtas e frequentes ao longo do ano civil, em vez de fazer uma pausa prolongada de 2 a 3 meses durante o verão. Uma escola típica durante todo o ano funciona por nove semanas seguidas e depois faz uma pausa de três semanas na escola(11). Ressalta-se que no período pandêmico houve alteração da rotina escolar em todo o mundo.
Em um estudo, realizado em São Paulo, Brasil, anteriormente à pandemia do coronavírus, sobre o brincar da criança na metrópole, indica que o clima frio pode ser um fator importante para a pouca frequência das crianças pequenas nos parques, principalmente no mês de julho(12). Sugere-se que, mesmo sem a necessidade de isolamento social imposto pela pandemia, as crianças permanecem mais frequentemente no domicílio durante o mês de julho devido ao período de inverno, em especial na região Sul do Brasil.
Outrossim, não foram encontrados estudos nacionais e internacionais que abordem os meses de prevalência das queimaduras em crianças durante a pandemia de COVID-19 e a relação deste acidente com as férias escolares.
Nesse cenário, um dos aspectos relevantes neste estudo a ser considerado foi o maior número de acidentes entre as crianças em idade escolar durante os meses do meio e começo/final do ano. Sugere-se que a mudança no tipo de supervisão e exposição aos riscos de acidentes domésticos durante as férias escolares podem ser fatores determinantes para resultar no aumento dos acidentes por queimaduras. Vale destacar que a dificuldade de acesso as creches durante as férias escolares também podem levar os pais deixarem seus filhos com mínima ou nenhuma supervisão. Estudos anteriores mostraram a falta de conhecimento de primeiros socorros eficazes na ocorrência de queimaduras entre os cuidadores e profissionais de saúde acarretando maior agravo com lesões mais profundas e extensas pelo tempo de exposição do agente na pele(13-15).
Neste estudo, nota-se que as queimaduras foram mais frequentes em menores de 6 anos (82,1%), tanto antes quanto durante a pandemia, podendo-se inferir que, mesmo na presença de adultos pais e/ou familiares, o acidente manteve sua ocorrência.
Quanto à extensão das queimaduras, percebe-se que a maioria das crianças (74,5%) apresentou SCQ <10% neste estudo. Outros autores relatam que a gravidade das queimaduras foi maior durante o lockdown, evidenciada por um aumento nos alertas de queimadura, área corporal total queimada >5% e internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI)(10). A depender da gravidade da queimadura, relacionado a SCQ, a profundidade e a região corpórea afetada, a criança demanda de maior tempo de hospitalização. Este fato pode acarretar em suscetibilidade a infecções e, posteriormente, a ocorrência de óbito. Entretanto, a ocorrência dos óbitos neste estudo se deu em 2019 quando não havia o isolamento social imposto pela pandemia, logo não se identificou relação entre antes e durante a pandemia com a mortalidade.
Segundo estudo realizado no Pediatric Burn Unit of the University Children’s Hospital of Zurich (Suíça) em 2019, apesar dos avanços no manejo cirúrgico e cuidados intensivos para cirurgia de queimados, a morbimortalidade de pacientes com queimaduras graves permanecem elevadas. Especialmente na população pediátrica, as queimaduras muitas vezes levam a consequências devastadoras, como a necessidade de cirurgia corretiva até a idade adulta. Os autores enfatizam a necessidade de medidas altamente específicas de prevenção e indica a necessidade de certos grupos-alvo que são especialmente vulneráveis como as crianças(14).
Outro agravante, durante o crescimento e desenvolvimento da fase infantil para a adulta, é o comprometimento funcional da área afetada, bem como emocional e social, comprometendo a qualidade de vida tanto da vítima como dos familiares(16). Vale ressaltar que, em outubro de 2018, sancionou-se no Brasil a lei nº 13.722 que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de primeiros socorros de professores e funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados de educação básica e de estabelecimentos de recreação infantil(17). Entre as pesquisas publicadas sobre essa temática no país, observa-se que desde janeiro de 2011, os profissionais da saúde já haviam sinalizado déficits importantes no conhecimento sobre as práticas de primeiros socorros para professores da educação infantil, por vivenciarem situações escolares que necessitavam de um atendimento imediato(18).
Estudo realizado em Catanduva, São Paulo, demonstra a necessidade de desenvolver ações de sensibilização e orientação aos pais e à população em geral, por meio de programas educativos e campanhas de prevenção, trazendo a família e a escola como responsáveis pela formação das crianças e dos adolescentes, e que representam um papel importante na promoção e na prevenção de acidentes infantojuvenis(19).
Tais dados remetem para a necessidade de ações de educação permanente dos profissionais da educação e saúde, bem como da população para o atendimento emergencial no cenário extra-hospitalar para o adequado manejo, com encaminhamentos a tempo oportuno para que outros agravos sejam minimizados, tais como infecções que potencializam os riscos de mortalidade.
As limitações do estudo foram a dificuldade de coleta de dados no CTQ no período pandêmico, e ainda, como supracitado, a falta de informações completas de alguns prontuários eletrônicos especificamente sobre a queimadura.
CONCLUSÕES
Acreditava-se que o número de queimaduras durante a pandemia poderia ser menor, visto o isolamento social e permanência dos adultos, possivelmente as crianças estariam melhores supervisionadas. Mas, as queimaduras permaneceram predominantes no ambiente doméstico, mesmo que o número de casos 2020/2021 tenham sido menores se comparado ao período anterior.
A persistência da ocorrência deste agravo e maior tempo de hospitalização para o tratamento aumenta a suscetibilidade deste grupo etário a infecções e procedimentos invasivos e dolorosos, que são prejudiciais a sua saúde física e psicológica, comprometendo a sua qualidade de vida, e podendo levar até a morte.
Nesse sentido, dada a sua gravidade e alta prevalência até os dias atuais, com ou sem pandemia, urge a implantação de políticas de prevenção, promoção e reabilitação que envolvam instituições da educação, saúde, judiciário, assistência social e outras organizações da sociedade para a redução dos índices de morbimortalidade.
Para tanto, o compartilhamento de informações com linguagem acessível a todos sobre seus fatores de risco e medidas de prevenção, é uma estratégia essencial para evitar a ocorrência do agravo, as sequelas, e por conseguinte os óbitos(20).
REFERÊNCIAS
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Fomento e Agradecimento:
A pesquisa não recebeu financiamento.
Critérios de autoria (contribuições dos autores):
Paola Ramos Silvestrim: Contribuiu substancialmente na concepção e no planejamento do estudo; na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados; na redação, revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Susany Franciely Pimenta: Contribuiu na obtenção, na análise e/ou interpretação dos dados; na redação, revisão crítica e aprovação final da versão publicada.
Rosângela Aparecida Pimenta: Contribuiu na concepção e/ou no planejamento do estudo; e na aprovação final da versão publicada.
Declaração de conflito de interesses:
Nada a declarar.
Scientific Editor: Ítalo Arão Pereira Ribeiro. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0778-1447
Rev Enferm Atual In Derme 2025;99(Ed.Esp): e025038