RELATOS

 

EXPERIÊNCIAS EXITOSAS NA REESTRUTURAÇÃO DA REDE DE CUIDADOS À PESSOA COM DEFICIÊNCIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

SUCCESSFUL EXPERIENCES IN THE RESTRUCTURING OF THE CARE NETWORK FOR PEOPLE WITH DISABILITIES: EXPERIENCE REPORT

 

EXPERIENCIAS EXITOSAS EN LA REESTRUCTURACIÓN DE LA RED DE ATENCIÓN A PERSONAS CON DISCAPACIDAD: INFORME DE EXPERIENCIA


 


https://doi.org/10.31011/reaid-2025-v.99-n.4-art.2571

 

1Amanda Rezende Silva de Oliveira

2Maithê de Carvalho e Lemos Goulart

3Leidiane Farias de Sousa

4Rosielen dos Reis Medeiros de Meireles

5Carolina Pereira da Silva Melo

6Ariana Antunes de Souza Oliveira da Silva

7Andréia Oliveira de Paula Murta

 

1Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0007-8409-6597

2Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2764-5290

3Universidade Federal Fluminense, Rio das Ostras, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0009-1923-9453

4Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0005-5079-3322

5Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0005-2431-667X

6Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, Belo Horizonte, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0004-6438-7053

7Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0009-0006-5016-3379

 

Autor correspondente

Amanda Rezende Silva de Oliveira

Rua VL, número 135, Bairro Lagoa Mansões - Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil - CEP: 33.236.754, contato:  +55 31 8824-1319 - E-mail: amandarsoliveiraenf@gmail.com

 

Submissão: 14-05-2025

Aprovado: 22-09-2025

 

RESUMO

Introdução: As Redes de Atenção à Saúde são organizadas pela integração de tecnologias, serviços e ações voltadas para a saúde. A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em um município de Minas Gerais enfrenta desafios relacionados à marginalização, invisibilidade e dificuldades financeiras e sociais dos usuários que comprometem o acesso a uma assistência integral, afetando sua reabilitação e inclusão social. Essa realidade evidencia a necessidade de intervenções e posturas gerenciais para promover melhorias efetivas. Relato do caso (Resultados): Este relato de experiência aborda a reestruturação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, articulada em cinco fases: ponto de partida, perguntas iniciais, recuperação do processo vivido, reflexão de fundo e pontos de chegada. Foram implantados novos serviços e fluxos relacionados à regulação de pacientes que favoreceram a articulação multiprofissional e intersetorial da rede. Observou-se a retomada de premissas básicas recomendadas pelas normativas, porém negligenciadas na prática cotidiana dos serviços, resultando em maior organização e eficiência no atendimento. Conclusão: As ações gerenciais exitosas promoveram a melhor integração da rede, permitindo a absorção da demanda previamente excluída. A escuta ativa e a articulação com pessoas com deficiência, familiares e profissionais de saúde foram essenciais para a formulação de medidas mais assertivas e para o êxito do processo de reestruturação.

Palavras-chave; Pessoas com Deficiência; Serviços de Saúde para Pessoas com Deficiência; Atenção à Saúde; Gestão em Saúde; Fluxo de trabalho.

 

ABSTRACT

Introduction: Health Care Networks are organized through the integration of technologies, services, and health-related actions. The Care Network for People with Disabilities in a municipality of Minas Gerais faces challenges related to marginalization, invisibility, and financial and social difficulties of its users, which compromise access to comprehensive care, affecting their rehabilitation and social inclusion. This reality highlights the need for managerial interventions and approaches to promote effective improvements. Case Report (Results): This experience report addresses the restructuring of the Care Network for People with Disabilities, organized into five phases: starting point, initial questions, reconstruction of the lived process, in-depth reflection, and points of arrival. New services and patient regulation workflows were implemented, fostering multiprofessional and intersectoral articulation within the network. A return to basic premises recommended by regulations, but previously neglected in daily practice, was observed, resulting in better organization and efficiency in care delivery. Conclusion: Successful managerial actions promoted better network integration, enabling absorption of previously excluded demand. Active listening and collaboration with people with disabilities, their families, and healthcare professionals were essential for formulating more assertive measures and achieving success in the restructuring process.

Keywords: People with Disabilities; Health Services for People with Disabilities; Health Care; Health Management; Workflow

 

RESUMEN

Introducción: Las Redes de Atención en Salud se organizan mediante la integración de tecnologías, servicios y acciones orientadas a la salud. La Red de Cuidados para Personas con Discapacidad en un municipio de Minas Gerais enfrenta desafíos relacionados con la marginalización, invisibilidad y dificultades financieras y sociales de sus usuarios, lo que compromete el acceso a una atención integral, afectando su rehabilitación e inclusión social. Esta realidad evidencia la necesidad de intervenciones y posturas gerenciales para promover mejoras efectivas. Relato del caso (Resultados): Este relato de experiencia aborda la reestructuración de la Red de Cuidados para Personas con Discapacidad, organizada en cinco fases: punto de partida, preguntas iniciales, recuperación del proceso vivido, reflexión profunda y puntos de llegada. Se implementaron nuevos servicios y flujos relacionados con la regulación de pacientes, que favorecieron la articulación multiprofesional e intersectorial dentro de la red. Se observó la retomada de premisas básicas recomendadas por las normativas, pero anteriormente desatendidas en la práctica cotidiana de los servicios, resultando en una mejor organización y eficiencia en la atención. Conclusión: Las acciones gerenciales exitosas promovieron una mejor integración de la red, permitiendo la absorción de la demanda previamente excluida. La escucha activa y la articulación con las personas con discapacidad, sus familiares y los profesionales de la salud fueron esenciales para la formulación de medidas más asertivas y para el éxito del proceso de reestructuración.

Palaras clave: Personas con Discapacidad; Servicios de Salud para Personas con Discapacidad; Atención en Salud; Gestión en Salud; Flujo de Trabajo.

 


INTRODUÇÃO

As Redes de Atenção à Saúde (RAS) representam arranjos organizacionais estruturados por meio da integração de diferentes tecnologias, serviços e ações voltadas para a saúde, com o propósito de garantir a integralidade do cuidado. Essas redes, articuladas por sistemas de gestão, apoio técnico e logístico, buscam assegurar uma assistência qualificada e contínua, abrangendo os três níveis de atenção à saúde: primária, secundária e terciária(1). Tais arranjos organizativos compõem o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem garantido, com sua implementação, acesso a distintos programas de saúde, e, assim, diminuído a mortalidade no Brasil(2).

Dentre as diversas redes de saúde do Brasil, o presente relato de experiência possui como foco a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD), constituída a partir da publicação das Portarias MS/GM n° 793/2012 e n° 835/2012, atualmente substituídas pelas Portarias MS de Consolidação n° 3/2017 e n° 6/2017, respectivamente(1). No Estado de Minas Gerais, a RCPD foi instituída por meio da deliberação da Comissão Intergestores Bipartite do Estado de Minas Gerais (CIB-SUS-MG) n° 1272/2012(3). Em Lagoa Santa, município de Minas Gerais, a RCPD é regida pelo Decreto Municipal nº 4.879, de 13 de abril de 2023, que estabelece a nova Política de Atenção Integral à Pessoa com Transtorno do Neurodesenvolvimento e/ou Deficiência Física no município(4).

Para o estabelecimento de uma RCPD efetiva é necessário garantir a articulação entre os componentes de atenção à saúde, a atenção primária, a atenção especializada, a atenção hospitalar e a urgência e emergência(1,4). Embora a articulação efetiva seja necessária, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) no Brasil apresenta-se fragmentada, caracterizada pela falta de integração entre os serviços e pela ausência de atendimentos especializados. Essa configuração resulta em lacunas assistenciais que prejudicam as pessoas com deficiência(5-6).

A falta de oferta adequada dos serviços de saúde impõe às famílias preocupações e desafios constantes, além de significativa pressão financeira. As pessoas com deficiência enfrentam marginalização e invisibilidade, além de dificuldades financeiras, sociais e dentro da própria Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Essas condições impedem o acesso a uma assistência integral, interdisciplinar e intersetorial, comprometendo tanto sua reabilitação quanto sua inclusão social, o que gera sofrimento para os pacientes e seus familiares(5-6).

 Assim, diversos fatores levaram a eclodir a necessidade de intervenções e posturas gerenciais, urgentes, para melhorias na RCPD, tornando-se necessário relatar as experiências exitosas para a reestruturação da RCPD permitindo a divulgação de medidas de gestão que possam contribuir com melhorias da RCPD em outros cenários e localidades.

 

OBJETIVO

Este estudo tem como objetivo relatar as experiências exitosas na reestruturação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no município de Lagoa Santa, em Minas Gerais, Brasil.

 

MATERIAL E MÉTODO

Relato de experiência, com abordagem descritiva, sobre a primeira fase de reestruturação da RCPD no município de Lagoa Santa, localizado na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Brasil, vivenciada de setembro de 2022 a abril de 2024. As ações relatadas se deram no âmbito da gestão da RCPD que atende a uma população adscrita de 2.091 indivíduos com deficiência cadastrados no e-SUS Atenção Primária à Saúde no ano de 2024(7). Os serviços que integram a rede em questão são: Equipe de Saúde da Família (ESF), Clínica Ampliada Multiprofissional, Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), Centro de Reabilitação (CREAB), Centro de Atenção Integrada à Saúde (CAIS) e Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).

Este relato de experiência foi organizado com o propósito de produzir conhecimentos relevantes e passíveis de aplicação em diferentes contextos, sendo estruturado da seguinte forma: 1) Pontos de partida; 2) Perguntas iniciais; 3) Recuperação do processo vivenciado; 4) Reflexão de fundo; e 5) Pontos de chegada(8). Fundamentado nessa sistematização, o relato de experiência incorpora uma análise detalhada, crítica e reflexiva da prática realizada(8,9).

No contexto da sistematização de experiência, o ponto de partida é a experiência prática em si mesma, seja uma intervenção, um projeto ou uma atividade realizada por um grupo ou organização(8). É a partir dessa experiência que se inicia o processo de sistematização, buscando entender seus elementos, dinâmicas e resultados. As perguntas iniciais são aquelas que orientam a reflexão sobre a experiência vivida e que direcionam o processo de sistematização. Elas podem abordar aspectos como os objetivos da experiência, os métodos utilizados, os desafios enfrentados, as estratégias adotadas e os resultados alcançados. Essas perguntas ajudam a guiar a análise e a recuperação das informações relevantes(8).

A recuperação do processo vivido refere-se à etapa em que se reconstrói a experiência, revisitando os eventos, as etapas, as decisões tomadas e as ações realizadas ao longo do caminho pelos protagonistas, adotando o tipo textual narrativo, sem comentários interpretativos ou explicações dos eventos ocorridos. A reflexão de fundo é uma análise mais profunda e crítica da experiência, buscando compreender suas causas, impactos e significados mais amplos. Envolve a identificação de tendências, contradições e aprendizados que emergem da experiência, bem como a conexão com teorias, conceitos e abordagens relevantes(8).

Os pontos de chegada são as conclusões e aprendizados obtidos a partir do processo de sistematização. Eles representam as principais recomendações e lições aprendidas que podem ser utilizadas para informar práticas futuras, políticas de influência ou contribuir para o conhecimento em determinada área. Esses pontos de chegada são o resultado da análise e reflexão sobre a experiência vivida(8).

Este relato de experiência dispensou a apreciação em Comitê de Ética em Pesquisa, uma vez que nenhum indivíduo foi abordado como sujeito de pesquisa e que foram descritos somente os processos gerenciais da RCPD.

 

RESULTADOS

O ponto de partida para o relato de experiência se deu com a desarticulação entre os pontos de atenção, gerando a necessidade de estabelecer e regular os fluxos assistenciais, construir mecanismos que apresentassem informações epidemiológicas da região de abrangência, fomentar práticas inclusivas para a pessoa com deficiência, garantir a oferta de novas vagas nos serviços especializados e resolver a demanda reprimida existente há mais de dois anos no município. Na avaliação dos serviços de saúde é fundamental que seja observado o seu funcionamento e o que pode ser melhorado através das demandas, dos processos de trabalho e principalmente dos resultados apresentados. Sendo assim, isso possibilita uma melhoria na qualidade e efetividade da assistência atingindo assim melhores índices de bem-estar para população.

As perguntas iniciais que irão orientar as discussões e fornecer uma estrutura sistematizada para o processo de reestruturação da RCPD do município de Lagoa Santa/MG, foram: Quais ações gerenciais são necessárias para a restruturação da RCPD no município? Quais podem ser os stakeholders envolvidos no processo de reestruturação da RCPD?

Para a reconstituição da história na recuperação do processo vivido no âmbito da gestão, para a reestruturação da RCPD, três ações fundamentais foram realizadas, quais sejam: 1) Instalação de um novo serviço de saúde voltado para o atendimento de pessoas com deficiência, 2) Implementação de fluxos/instrumentos para regulação dos casos para o novo serviço, 3) Adequação dos serviços existentes na rede para seguir o novo modelo reestruturado.

A instalação do novo serviço de saúde voltado para o atendimento de pessoas com deficiência, inserido na RCPD foi a medida estabelecida como mais emergente para a reestruturação da rede. Assim, foi implantado o CAIS cujo objetivo era atender toda a demanda reprimida do município, que à época, em setembro de 2022, estava próximo de 200 encaminhamentos.

Para sua instalação, foi necessário definir o planejamento estratégico pertinente; escolher e adequar um imóvel para sediar o serviço em questão; obter licenças e autorizações, em conformidade com requisitos legais relacionados à prestação de serviços de saúde; alocar os recursos financeiros e os recursos humanos necessários; prover infraestrutura/equipamentos; e, por fim, definir os critérios para avaliação e monitoramento de desempenho do referido serviço.

Buscou-se, nesse processo de implantação do CAIS, pesquisar e analisar, de forma abrangente, as reais necessidades do público em questão; para isso, foram realizadas diversas reuniões com as pessoas com deficiência e suas famílias, no intuito da escuta qualificada, para compreender as barreiras que enfrentam ao acessar os serviços de saúde existentes. Por meio dessa perspectiva colaborativa, focada na pessoa e não na deficiência, foi possível estabelecer um serviço de saúde inclusivo e sensível e, assim, ofertar igualdade de acesso, qualidade no atendimento e assistência humanizada no CAIS.

Assim, foi designado um Grupo de Trabalho (GT) para a condução da instalação do CAIS, composto por uma equipe multidisciplinar que enriqueceu e consolidou o sucesso dos trabalhos a partir de diferentes olhares sobre um mesmo objeto de estudo. Participaram ativamente do GT profissionais que assumiriam a gestão do novo serviço (coordenação e referência técnica), os profissionais selecionados para integrarem a nova equipe do serviço, além da referência técnica da política municipal da pessoa com deficiência. Os profissionais envolvidos no GT possuíam ampla expertise na RCPD ou na RAS (enfermeiro, terapeuta ocupacional, assistente social, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, médico, psicólogo e psicopedagogo), além de capacitação ou especialidade voltada ao cuidado da pessoa com deficiência. Cabe destacar que dois membros do GT são mães de crianças atípicas e dividiram suas experiências enquanto gestoras e usuárias da RCPD.

Diante das reuniões com as famílias e com o GT, elaborou-se a matriz SWOT com um resgate dos fatores apontados sobre a RCPD no que tange às forças, fraquezas, ameaças e oportunidades, considerando o ambiente interno à rede e o ambiente externo (Figura 1).

 

Figura 1 - Matriz SWOT para apresentação dos fatores relacionados ao ambiente interno e externo à Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, Minas Gerais, 2024.

 

 

 

DISCUSSÃO

Viver com deficiência pode ser avaliado como item de exclusão social e ausência, seja familiar, governamental ou de direitos. Sucedem-se termos como pessoas com deficiência, “deficientes”, “pessoas especiais, “pessoas com necessidades especiais”, “incapazes”, “defeituosos”, como termos capazes de rotular os seres humanos em conceitos pré-concebidos ao longo do tempo(10). O vocabulário utilizado apresenta mais do que um simples meio de comunicação, exerce influência sobre o pensamento e as concepções de profissionais de saúde e sociedade(10). Por meio dessa linguagem, é possível interpretar problemáticas cotidianas enfrentadas por pessoas com deficiência para além da interlocução são marginalizadas e inviabilizadas inclusive nos serviços de saúde(11).

A reorganização da RCPD no município de Lagoa Santa, em Minas Gerais, representa uma estratégia integrada para atender às demandas históricas e atuais desse grupo, em consonância com os princípios que orientam o Sistema Único de Saúde (SUS). A universalidade, um dos pilares doutrinários do SUS, visa garantir o acesso irrestrito a todos os cidadãos, inclusive pessoas com deficiência. Contudo, a implementação prática enfrenta desafios consideráveis; embora a incorporação das necessidades dessa população tenha sofrido algum avanço nas políticas públicas, a prática ainda apresenta lacunas significativas quanto à integralidade e à equidade do cuidado(11).

Ao longo do tempo, é possível perceber que o SUS não foi construído visando às necessidades da população com deficiência e que, possivelmente, este grupo não teve voz no momento do planejamento dos serviços de forma equânime à sociedade(6). Vale ressaltar que a ausência de participação de todos os atores nos espaços de decisão impede que suas potencialidades e fragilidades sejam discutidas e alinhadas sob as diversas óticas de uma rede de atenção à saúde(6). Estudos realizados em diferentes regiões do Brasil apontam resultados convergentes, indicando que as redes de cuidados à pessoa com deficiência não conseguem atender plenamente ao que é estabelecido pelas normativas vigentes (5,6).

Logo, em Lagoa Santa, percebeu-se a necessidade de implementar as políticas públicas vigentes, as quais estabelecem diretrizes para o atendimento desse público, além de estratégias visando estabelecer comunicação efetiva entre os serviços da rede e, por consequência, uma assistência humanizada e qualificada dentro da RCPD do município.

As Redes de Atenção à Saúde, em sua estrutura organizacional, precisam sustentar o cuidado destinado às pessoas com deficiência, integrando esse cuidado de forma consistente às estruturas da própria rede e levando em consideração as distintas situações regionais e territoriais.

Visando garantir que a assistência em saúde seja norteada por cada realidade e que priorize os projetos terapêuticos individualizados, possibilita-se, dessa forma, a promoção da equidade e da integralidade do cuidado, assim como a consideração das características e desafios de cada território (12–14).

Durante o processo de implantação do novo serviço, buscou-se trazer à luz as experiências e percepções dos usuários sobre a qualidade dos cuidados recebidos dentro da RCPD, com a intenção de minimizar os principais desafios relatados, como a dificuldade de acesso relacionada ao tempo de espera para iniciar a reabilitação, a fragmentação do cuidado, a falta de preparo dos profissionais e a escassez de informações.

Estudos apontam que as principais críticas de usuários são tocantes à dificuldade de acesso aos serviços especializados, à fragmentação do cuidado, o que compromete a continuidade e a efetividade do tratamento, além do despreparo dos profissionais. Os referidos autores, corroborando o cenário do município em questão, sugerem que, para melhorar a qualidade da atenção, é necessário fortalecer a integração entre os diferentes níveis de atenção e promover a capacitação contínua dos profissionais envolvidos, a fim de assegurar que o cuidado às pessoas com deficiência atenda às suas necessidades de forma abrangente e resolutiva (14).

A atenção às pessoas com transtornos ou deficiência física no município de Lagoa Santa deve ser realizada pelas Equipes da ESF, Clínica Ampliada Multiprofissional, Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, Centro de Reabilitação e o CAIS, contando também com os demais serviços da rede municipal. A Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), hoje, integra a rede como responsável pelo Serviço Especializado de Reabilitação em Deficiência Intelectual (SERDI) e pelo Programa de Intervenção Precoce Avançada (PIPA)(4). O novo serviço CAIS foi implantado para ser habilitado como Centro Especializado em Reabilitação (CER), em sua Microrregião de Saúde, e encontra-se aguardando o resultado do processo.

A implantação de serviços de qualidade em reabilitação requer planejamento cuidadoso e atenção a diversos fatores. A criação dos CERs é uma iniciativa significativa que visa melhorar o acesso e a qualidade dos serviços. Esses centros oferecem diagnóstico, tratamento e reabilitação em múltiplas modalidades (auditiva, física, intelectual e visual), atendendo a uma demanda considerável da população. De acordo com o Ministério da Saúde, novos centros estão sendo implantados, com investimentos significativos para atender a um maior número de pessoas com deficiência(12,13).

Os CERs têm demonstrado sucesso em oferecer um atendimento integral e especializado. No entanto, é essencial que esses centros sejam parte de uma rede articulada de atenção, garantindo a continuidade e a integralidade do cuidado. A gestão desses serviços deve considerar a especificidade de cada modalidade de reabilitação e as necessidades particulares dos pacientes, promovendo a inclusão social e a qualidade de vida(12,13). No Brasil, os serviços de reabilitação que integram a RCPD enfrentam desafios significativos, especialmente no que diz respeito à oferta de serviços de qualidade e à formação e à distribuição adequada dos profissionais. Estudos recentes mostram que a formação contínua e a capacitação são essenciais para garantir a qualidade no atendimento e a satisfação dos pacientes. Os profissionais de reabilitação devem possuir uma combinação de competências técnicas e habilidades interpessoais. A empatia e a capacidade de comunicação são fundamentais para o atendimento humanizado, assim como a formação contínua, com programas de educação permanente e treinamento em serviço (11). Na gestão e implementação de serviços de reabilitação, o esforço deve ser perene e colaborativo entre o governo, profissionais da gestão em saúde, profissionais dos serviços da RCPD, além de uma forte participação da sociedade civil. O estudo intitulado “Rehabilitation in South India” avaliou o cenário da reabilitação no sul da Índia, destacando os desafios e avanços nesse campo. Os autores analisaram a interação entre fatores culturais, sociais e econômicos que influenciam o acesso e a qualidade da reabilitação na região. O estudo aborda como as desigualdades na distribuição de recursos e a falta de profissionais especializados afetam a eficácia dos serviços de saúde para pessoas com deficiência. Por fim, os autores sugerem que a reabilitação na Índia pode beneficiar-se de uma maior atenção política e investimentos direcionados, especialmente para populações em áreas rurais e marginalizadas. A pesquisa conclui que, para garantir a equidade no acesso aos cuidados de reabilitação, são necessárias reformas estruturais e mais investimentos em infraestrutura e capacitação. Realidade observada e relatada também por estudos realizados no Brasil(15).

As experiências exitosas apresentadas no presente estudo poderão contribuir com a literatura no aprimoramento da implementação da RCPD em outros cenários, por descrever ações e tomadas de decisões na implementação e reestruturação da RCPD do município.

A literatura permite a observação da face da desigualdade, vivenciada por pessoas com deficiência em seus cotidianos. Observa-se, através do precário cenário das RCPDs estudadas, a falta de dados epidemiológicos coerentes, baixa cobertura de serviços de reabilitação, fragmentação do cuidado, um sistema de saúde falho, recursos financeiros diminutos, recursos humanos limitados e capacitação profissional deficitária(15).

Constatou-se que os esforços gerenciais voltados para a implantação, implementação ou reestruturação de uma RCPD de qualidade devem estar fundamentados em uma abordagem centrada no paciente e integrada, adaptando-se de maneira essencial às necessidades específicas de cada indivíduo. Assim como a infraestrutura física, a formação contínua e a educação permanente dos profissionais apresentam-se como essenciais, visando ao cuidado humanizado, à competência técnica e à comunicação efetiva entre os pontos de atenção da rede.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A RCPD do município de Lagoa Santa, MG, apresentou fragilidades que suscitaram a necessidade de articulação entre os serviços de saúde para atender uma demanda crescente de PCD à margem do SUS. Assim, as experiências exitosas de ações gerenciais promoveram a melhor articulação da rede, bem como proporcionaram a absorção de toda a demanda excedente antes excluída. Para o êxito nas ações realizadas, a articulação e escuta aos anseios das PCD, bem como dos familiares e dos profissionais de saúde que atuam na assistência direta aos usuários, proporcionaram a elaboração de medidas mais assertivas neste processo. Destacaram-se, entre as medidas gerenciais tomadas, a criação de um novo serviço especializado para a RCPD, a implementação de um instrumento de avaliação que permitiu o encaminhamento mais direcionado à demanda do PCD, além do investimento em canais mais abertos e permanentes para escuta ativa das demandas dos usuários e suas famílias. Este relato contribui significativamente para a prática da gestão de Redes de Cuidados à Pessoa com Deficiência, uma vez que pode servir de parâmetro de experiências exitosas que contribuíram para a reestruturação de uma rede anteriormente fragmentada, apontando caminhos e direções que podem ser seguidos para o acesso equânime à saúde por uma população constantemente marginalizada.       

 

REFERÊNCIAS

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2.                  Campos GWS. Elementos para uma Política Nacional e Integrada de Pessoal para o Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade. 2023;32(Suppl 2): e220901pt. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902023220901pt

3.                  Minas Gerais (BR). Deliberação CIB-SUS/MG nº 2003, de 9 de dezembro de 2014. Estabelece as atribuições e diretrizes operacionais dos Conselhos Regulatórios da Rede de Cuidados para Pessoas com Deficiência do SUS-MG (RCPD) e fornece outras medidas. 2014. p. 01-27. Disponível em:  https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/Del2003DeliberacaoJRRCPD.pdf

4.                  Lagoa Santa (MG). Decreto nº 4879, de 2023. Implementa a política de atenção à pessoa com deficiência no âmbito do município de Lagoa Santa. 2023. Disponível em: https://leismunicipais.com.br/a/mg/l/lagoa-santa/decreto/2023/488/4879/decreto-n-4879-2023-implementa-a-politica-de-atencao-a-pessoa-com-deficiencia-no-ambito-do-municipio-de-lagoa-santa

5.                  Santos NG. Desigualdade e pobreza: análise da condição de vida da pessoa com deficiência a partir dos indicadores sociais brasileiros [tese de doutorado]. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2020. 141 f. Disponível em: https://repositorio.uel.br/items/5b4d47f1-5344-4d36-bfea-d4a0563e1e50/full

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7.                  Ministério da Saúde (BR). e-SUS Atenção Primária (e-SUS APS) [Internet]. Disponível em: https://sisaps.saude.gov.br/esus/. Acesso em: 29 ago. 2024.

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Declaração de Financiamento

Declaramos que o estudo intitulado "Experiências exitosas na reestruturação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência: relato de experiência" não recebeu apoio financeiro de instituições públicas, privadas ou organizações sem fins lucrativos. Todas as atividades descritas foram desenvolvidas sem financiamento externo.

 

Critérios de autoria (contribuições dos autores)

Amanda Rezende Silva de Oliveira e Maithê de Carvalho e Lemos Goulart contribuíram substancialmente em todas as etapas do estudo, incluindo: (1) concepção e/ou planejamento do estudo; (2) obtenção, análise e/ou interpretação dos dados; (3) redação do manuscrito, revisão crítica de conteúdo relevante e aprovação final da versão a ser publicada.

Os demais autores participaram da discussão dos resultados, contribuíram com a revisão crítica do conteúdo e aprovaram a versão final do manuscrito.

 

Declaração de Conflito de Interesses

Nada a declarar. Os autores afirmam não haver conflitos de interesse de natureza financeira, política, institucional ou de qualquer outra ordem relacionados a este estudo.

 

Editor Científico: Francisco Mayron Morais Soares. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7316-2519

 

Rev Enferm Atual In Derme 2025;99(4): e025144                 

 Atribuição CCBY